Edgard Abbehusen: Em último ato, “ainda estou aqui” nos lembra de um passado que o Brasil ainda não digeriu

O filme de Walter Salles, “Ainda Estou Aqui”escancara a nossa ferida aberta.  É como se o Brasil se olhasse no espelho e visse um rosto envelhecido, cansado, cheio de cicatrizes que tentou disfarçar com maquiagem e uma boa máscara  — mas ali, na tela do cinema, essa máscara  desaba.

A história de Eunice Paiva, uma mulher que é arrancada do papel de esposa e jogada na militância à força, é uma metáfora brutal da nossa própria condição. Ela perde o marido para a ditadura e se vê obrigada a gritar por justiça. É uma heroína sem querer ser, representando todas as mães, esposas, e filhos que esperaram em vão por respostas. Até hoje. Famílias que carregam seus mortos na memória, enquanto os algozes caminham soltos, livres, heroificados.

Fernanda Montenegro e Fernanda Torres se jogam nesse papel como se carregassem, na pele, o peso do país inteiro. Elas não precisam das falas, elas têm o olhar, a postura, o silêncio. Em seu grande ato final, Fernanda Montenegro encara a tela de uma TV sintonizada nas notícias atuais. É ali que o filme faz o seu maior barulho, só com o silêncio incômodo daquilo que a gente se recusa a enterrar.

“Ainda estou aqui” entende que o Brasil não precisa de grandes discursos para ver a própria ferida. Ele nos coloca frente a frente com nosso luto mal-resolvido, com os mortos que ainda andam entre nós. E o filme se arrasta como um fantasma que passa pelos corredores de Brasília, pelas esquinas de São Paulo, pelos becos do Rio — lembrando que a gente ainda vive em cima de uma terra remexida, onde os corpos nunca descansaram em paz.

Quando as luzes do cinema acendem, fica essa sensação de soco no estômago. E o recado: enquanto o Brasil não se resolver com seus próprios fantasmas, estaremos todos presos nesse purgatório da história. Direção, roteiro e atuações esfregam nossa própria história na nossa cara, sem pedir licença. E a gente sai com a certeza de que, por mais que tentemos, nunca conseguiremos enterrar o que deixamos mal resolvido.

Talvez essa seja a grandeza de “Ainda Estou Aqui”: apesar das grandes atuações, consagrando mãe e filha como duas das maiores atrizes do cinema nacional, o filme não nos deixa sair do cinema aliviados. É duro reconhecer que fizemos muito pouco por nós mesmos — e por todos que viveram aquele tempo que, de certa forma, ainda está aqui.

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